Juntos por Jericoacoara
Alceu Galvão, analista de Regulação da Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados do Estado do Ceará (Arce), fala sobre a campanha “Abraço Jeri e Cuido do Meio Ambiente”, que tem integrado ações de diferentes órgãos e entidades para o melhor uso de águas subterrâneas e uso adequado da rede coletora de esgoto.
Revista Cagece – Enquanto iniciamos esta entrevista, em Jericoacoara temos equipes da Cagece e Cogerh em campo, em uma ação desafiadora que é melhorar as condições do esgotamento sanitário da Vila. Gostaria que você contextualizasse a campanha “Abraço Jeri e Cuido do Meio Ambiente”.
Alceu Galvão – Inicialmente, cabe lembrar que a demanda para a campanha “Abraço Jeri” surgiu a partir de uma necessidade da Cagece. A companhia tem seu sistema prejudicado no momento em que ligações indevidas são encaminhadas à rede coletora de esgoto. Isso pode causar um dano não só ambiental, mas também de natureza econômica, tendo em vista o caráter turístico da região. Então, o “Abraço Jeri” foi uma demanda formalizada da Cagece para a Arce e, a partir daí, surgiu todo um contexto. Nós observamos que sozinha a Cagece – ou só a Arce, ou só a Prefeitura – não seria capaz de resolver a complexidade dessa questão ambiental em Jericoacoara. Para isso, nós articulamos um conjunto de entidades em níveis municipal, estadual e federal para que pudéssemos abraçar esse problema. Nesse sentido, buscamos parcerias no Governo do Ceará, no ICMbio (Instituto Chico Mendes), com a Prefeitura de Jijoca, Ministério Público, onde cada um, dentro das suas competências, pudessem atuar.
RC – E qual a complexidade de reunir todas essas entidades e articular um plano em conjunto, específico para Jeri?
AG – É extremamente complexo. E acredito ter sido a primeira grande vitória da campanha: unir essas entidades em torno da defesa da sustentabilidade ambiental de Jeri. A questão é que, se não existir essa união, não teremos sucesso nas ações. E falo da complexidade do tema, porque não se trata apenas de um problema ambiental, mas também envolve interesses econômicos.
RC – O “Abraço Jeri” teve a fase de sensibilização e está agora na fase de fiscalização. Como você avalia o andamento da ação?
AG – Eu diria que tivemos quatro fases. A primeira foi prévia, reunindo todas as entidades na elaboração de um plano de ação, e esse primeiro momento foi muito importante. A segunda fase foi de sensibilização, com a atuação da equipe social Cagece, em que houve um entendimento por parte dos empresários e da população em torno do tema. A terceira fase, que considero a fase mais complexa, é a de fiscalização/operacionalização que passa pela hidrometração dos poços, pela retirada de ligações clandestinas, interligação de imóveis à rede coletora de esgoto, regularização do uso e ocupação do solo. Essa fase é mais difícil, de enforcement, de fazer com que a lei seja cumprida. Nesse sentido, nós estamos tendo algumas dificuldades e resistências que já prevíamos, como as de empresários que não têm a compreensão e a dimensão da importância que é a questão ambiental para Jericoacoara do ponto de vista turístico e econômico. Mas são resistências que esperamos vencer ao longo dos meses. O mais interessante é que essa ação tem tudo para se tornar aplicável em outras regiões do estado e do país, a depender dos resultados que vamos obter. E a quarta fase é de monitoramento dessas ações.
RC – Uma demanda que surgiu a partir do lançamento indevido de águas de piscina na rede coletora de esgoto, abriu um leque de outras demandas como, por exemplo, a hidrometração dos poços, para que se tenha maior controle da qualidade e quantidade de água subterrânea consumida. Em saneamento, todas essas questões estão interligadas? Precisam ser resolvidas em conjunto?
AG – A questão de Jeri é como se você puxasse um fio em um novelo. O que poderia ser um problema isolado na verdade está integrado com outros problemas. Então resolver a questão das piscinas significa criar um problema na área de drenagem, ou seja, nós precisaremos resolver as questões de forma gradativa, até pela disponibilidade de recursos financeiros. Precisamos ter um olhar para cada um dos problemas, observando de forma integrada. Não adianta resolver o esgoto se não resolver águas de chuvas, se não resolver drenagem. Está tudo interligado. Na verdade, esse é o verdadeiro conceito de saneamento básico integrado. Cabe lembrar que, apesar de não ser objeto do “Abraço Jeri”, a Prefeitura de Jijoca vem desenvolvendo com eficácia a coleta seletiva de resíduos sólidos. Ou seja, nós estamos diante de questões relacionadas à drenagem de águas pluviais, esgotamento sanitário, abastecimento de água e, de forma complementar, a Prefeitura tem trabalhado resíduos sólidos. De fato, o que vemos é o conceito da Lei nº 11.445/2007 que fala do saneamento básico integrado. Ou seja, temos os quatro componentes do saneamento básico e um colabora com o outro para que tenhamos salubridade ambiental.
RC – Falando de abastecimento de água, apesar do “Abraço Jeri” puxar para o esgotamento sanitário, não podemos esquecer que isso também pode afetar a qualidade da água subterrânea…
AG – Importante falar da qualidade da água bruta de Jericoacoara. Problemas advindos dessas questões ambientais podem repercutir na qualidade da água. Análises da água já apontam, em alguns casos, a presença de nitrato, que é resultante da contaminação por esgoto. Outro problema que poderemos ter em Jeri é o avanço da água marinha pelo subsolo, em cima da água doce. Esse problema já está sendo detectado em Canoa Quebrada, onde poços estão salgados, e isso pode acontecer também em Jeri. Ou seja, corremos o risco de precisar investir altíssimo para o tratamento da água disponível no futuro. O Ceará tem domínio sobre as águas superficiais, mas sobre águas subterrâneas esse controle ainda é muito incipiente. Essa ação em Jeri é também um importante piloto para que o estado possa adotar as melhores práticas no uso das águas subterrâneas. Cabe lembrar que nós temos, aproximadamente, 200 poços em Jeri e a grande maioria não tem outorga, ou seja, não é regularizada, não há cobrança.
O volume de água produzido nesses poços impacta no que é destinado à rede de esgoto, já que não há controle de medição dessas águas.
RC – A gente percebe que existem irregularidades em empreendimentos desde os mais simples aos mais sofisticados. O que falta para que os empresários compreendam suas responsabilidades ambientais?
AG – Alguns empresários de Jeri compreendem a importância ambiental e a relação disso com a atração de turistas, e sabem que alguns turistas já estão reclamando e dizendo que ‘não adianta ter uma pousada bonita, piscinas bonitas, se as ruas estiverem mal cuidadas’, lavadas pelas águas das chuvas ou com tubulações expostas ou esgoto aparente. Isso acaba afastando os turistas. Outros empresários precisam compreender que a sustentabilidade ambiental está relacionada ao turismo. Existem estudos do Trata Brasil que mostram a relação entre o saneamento e o impacto do turismo. Porém, devemos destacar que alguns empresários em Jeri estão interessados em preservar o maior patrimônio turístico do Ceará – e um dos maiores do Brasil. Tudo isso passa pelo comportamento não somente do Estado e das entidades que prestam serviços, mas pela conscientização do empresário de fazer com que os resíduos, sejam eles líquidos ou sólidos, sejam dispostos da maneira adequada. Não havendo sensibilidade por parte de empresários, cabe ao estado usar o poder de polícia para coibir determinadas práticas inadequadas ao meio ambiente. Por isso, o desafio da fase de fiscalização. Estamos tendo uma adesão boa, mas, por outro lado, há um grupo que resiste a essas ações que são importantes para a sustentabilidade da Vila.
RC – E para onde caminha o “Abraço Jeri”?
AG – Penso eu que estamos caminhando e, não é um caminho fácil, para a regularização dos recursos hídricos. Penso que esse é o primeiro ganho que teremos com o “Abraço Jeri”. Passaremos a ter poços outorgados, hidrometrados, licenciados de acordo com a legislação de recursos hídricos. O segundo resultado que teremos, que considero de tamanha importância, é em relação às ligações factíveis de esgoto, ou seja, a possibilidade de interligar à rede quem ainda não está interligado. E o terceiro, que é o que nos causa maior preocupação, é em relação à drenagem de águas pluviais. Em função do adensamento do espaço em Jeri, nós teremos uma solução caso a caso. E não serão soluções simples. Há formas de se fazer drenagem em Jeri, mas em função do pavimento ser arenoso, é necessário que haja formas de contenção dessa areia. Inclusive, um grupo de empresários em Jeri está interessado em fazer um projeto-piloto, escolhendo alguns becos e transformando-os em locais sustentáveis, com drenagem adequada. Penso também que caminhamos para uma “convergência normativa”, ou seja, as várias lacunas observadas ao longo da ação estão sendo corrigidas pelas diferentes instituições.
RC – E como você avalia o papel da Arce nessa ação em Jeri?
AG – De fato, um dos grandes objetivos da Arce é proporcionar melhorias para os cearenses. Apesar de não ser uma tarefa diretamente ligada à regulação da prestação de serviços, está relacionada ao objetivo de fomentar incentivos para melhorias e universalização desses serviços. Então, se o “Abraço Jeri” tiver o resultado que esperamos, poderemos replicar essa experiência em outras regiões do Ceará, como é o caso do Cariri. A Arce atua articulando as entidades em torno dos objetivos. Vale destacar que não é um projeto apenas da Arce, mas de todas as entidades envolvidas.
RC – No Ceará, seu nome é como uma referência quando falamos de saneamento básico. Em que momento da sua carreira você entendeu que queria se aprofundar nesse tema?
AG – Mas só tenho 25 anos de saneamento (risos). Na verdade, trabalho com saneamento básico há exatos 28 anos. Iniciei na Sabesp (empresa de saneamento de SP, a maior do Brasil), na sequência entrei na Arce, após 10 anos de Sabesp. Fiz um intervalo para cursar o doutorado, depois fui convidado pelo então secretário das Cidades, Ivo Gomes, para coordenar a área de saneamento da Secretaria das Cidades, e passei dois anos e oito meses lá. Depois, retornei para a Arce como analista de Regulação. Acho que uma das grandes questões do saneamento básico é que as pessoas que trabalham no setor trabalham com amor. Aí você adiciona o compromisso profissional, o compromisso pessoal com a paixão por gostar da causa, sabendo que tudo o que fazemos tem uma repercussão social, ambiental e na saúde pública.
RC – É possível fazer um comparativo em relação à demanda do saneamento básico quando você iniciou e agora?
AG – Inicialmente não tínhamos uma visão integrada do setor. Apesar de teoricamente estar presente do ponto de vista acadêmico, é a prática diária junto com experiência teórica que nos faz convergir para um entendimento mais amplo em torno do saneamento básico. Aqui no Ceará, entendemos que ainda há um conjunto de desafios a serem superados. Mas o Ceará tem avançado bastante no saneamento urbano. O saneamento não é uma tarefa apenas de governo, mas de toda a sociedade. A sociedade precisa entender, por exemplo, que saneamento é muito mais importante do que um celular. Não é dada a devida valorização ao saneamento.
RC – E quando pensamos em mundo, dá para afirmar que os dilemas do saneamento da forma como pensamos hoje no Brasil é um problema típico de países em desenvolvimento? Em países desenvolvidos o saneamento é algo “consolidado”?
AG – De certa forma sim, na Europa e nos Estados Unidos. Mas existe um conjunto de problemas ambientais que esses lugares vivenciam em decorrência das mudanças climáticas. E isso cada vez mais trará custos financeiros, sociais e ambientais. Há outro aspecto que tem afetado países desenvolvidos – e também a nós – e que são temas novos para o setor, como é o caso dos anticoncepcionais e outros fármacos, além dos microplásticos. Ou seja, ainda estamos tentando resolver o básico do saneamento básico, mas já existem problemas que nossos tratamentos não conseguem resolver. Ainda estamos tentando resolver problemas de cor e turbidez. Mas o que as futuras gerações vão receber de herança ambiental, penso que será uma herança muito pesada. E, cada vez mais, a perspectiva é de que a água se torne mais cara. Teremos que ter tecnologias cada vez mais caras.
RC – Mas o que você acha que nos limita: recursos ou vontade política?
AG – Está mais relacionado à vontade política. Penso que há uma falha no setor de saneamento que não se comunica de maneira adequada com a sociedade. Precisamos levar o saneamento básico para todas as políticas de governo e ir além, para que a sociedade possa abraçar a bandeira do saneamento básico.